Já fizera de tudo, a mulher de trinta e quatro. Intercâmbio aos dezesseis, primeiro emprego aos dezessete, duas graduações: uma aos vinte e dois e outra aos vinte e quatro. Sim, no segundo ano da primeira, entrara na segunda e levou as duas como se leva duas sacolas na mão direita. Segundo emprego com quase vinte e um, terceiro aos vinte e cinco e um definitivo aos vinte e seis. Aos vinte e sete se fizera mulher bem sucedida e ganhara vinte mil ao mês para viver sozinha e alimentar um gato. Vivera sozinha em um apartamento com seu gato, Nietzsche, no alto de um morro fino numa cidade grande. Tivera sofá vermelho, puffs pretos, parede artesanal e espelhos no apartamento duplex. E seu gato dormira num cesto de madeira, ao pé de sua cama oriental de casal. Fora convidada para festas privadas, baladas caras, reuniões importantes e almoços de negócios. Enterrara Nietzsche aos trinta e um, chorando uma lágrima para cada milésimo de segundo que ele a acompanhara. Depois dele não tivera mais nenhum. Tivera três carros. O primeiro com travas elétricas, o segundo com insul-film e o terceiro com tudo que tivera direito. Fora cliente especial em bancos e lojas de roupas, e comprara bolsas, sapatos e jóias caras. Viajara pela Europa inteira e por todos os estados brasileiros. Conhecera gente importante, gente famosa, gente não-importante, gente-que-não-parecia-gente. Mas nenhuma fora realmente importante para a mulher. Seus pais foram bons, sua família comum, mas ninguém, de fato, a tocara daquele jeito. O único ser vivo que quase conseguira fora o gato. Então a mulher de trinta e quatro decidiu largar tudo. Largou o apartamento, os carros, o cesto de Nietzsche, as festas, o emprego de vinte mil reais, as bolsas e as roupas. Decidiu sair pelo mundo a fora, segurando apenas uma máquina fotográfica, relíquia que herdara do pai. Não, ele estava vivo, mas a câmera era praticamente um cadáver naquele armário empoeirado. Saiu andando e fotografando. Fotografou o azul do céu, o branco das nuvens, folhas, flores, filhos de mães alegres. Registrou momentos de alegria de casais de mãos dadas e o rosto de um senhor a chorar por uma fotografia. Clicou animais e até arriscou clicar o vento, mas a única imagem que restou na fotografia foi a dela. Primeira vez que a viu a máquina fez clic, mas o coração nem tum. Mas ao olhar para a foto, sentiu que a mulher a tocara daquele jeito. Sua vida, então, se transformou numa eterna busca. A busca pela mulher do vento. Sentou no banco perto do local da foto e alí ficou. Choveu e ela ficou. Fez sol e ela ficou. A lua se mostrou de quatro formas diferentes e ela ficou. Até que um dia a moça surgiu, como o segundo raio de sol que nasce por detrás dos prédios cinzas. Então, a mulher de quase trinta e seis, se aproximou e mostrou a foto. "Não sou eu", insistia. Mas, ao chegar mais perto, olhos bem próximos, ela se entregou: "Acho que sou eu, sim", e sorriu. "Olha só a mochila crua!". Hoje, a mulher de quarenta não tem quase nada. Mas tem o amor da moça. Então, diz, tem quase tudo.
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